Os próximos quatro anos serão decisivos para o cumprimento das metas do Marco Legal do Saneamento que o Brasil ainda segue longe de alcançar
Perguntei para a inteligência artificial como ela sintetizaria em imagens os principais desafios dos novos prefeitos na área de saneamento básico. As fotos que rapidamente surgiram são, em certa certa medida, um bom resumo do cenário que os novos gestores estão encontrando em centenas de municípios brasileiros: ruas com esgoto a céu aberto, lixo amontoado nas calçadas, casas sem água e sem banheiro.
Atualmente, mais de 90 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto (44,5% do total), cerca de 32 milhões vivem sem acesso à água potável (15,8% do total) e 4,4 milhões não têm têm banheiro em casa, segundo dados do Instituto Trata Brasil.
“Os novos prefeitos devem estar cientes de que a competência pela universalização do saneamento é municipal. Cabe a eles a responsabilidade pelo cumprimento do Marco Legal do Saneamento”, frisa Luana Siewert Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, em entrevista a esta coluna.
Sancionado em 2020, o novo Marco Legal do Saneamento (Lei Federal nº 14.026/2020) definiu uma meta única para todos os municípios do país. A lei prevê, entre outras coisas, que, até 2033, o Brasil deve fornecer água para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90%. No ritmo atual, a meta só será cumprida em 2070 — um atraso de 37 anos.
Segundo a presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, os próximos quatro anos serão essenciais para o cumprimento dessas metas. Para a especialista, muitos prefeitos, especialmente os de viés populista, ainda enxergam o saneamento como um passivo e não como um ativo, que vai melhorar a vida das pessoas.
Uma mentalidade que já passou da hora de mudar. A falta de acesso a saneamento básico influencia na saúde, na educação, na renda e até na nota do Enem, como já abordei aqui numa coluna de maio de 2024.
DESAFIOS E RISCOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
“Além da preocupação com a universalização do saneamento, os novos prefeitos também precisam avaliar os riscos que os seus municípios estão expostos, como contaminação e desabastecimento de água”, alerta Luana Pretto. De acordo com o estudo As mudanças climáticas no setor de saneamento: como tempestades, secas e ondas de calor impactam o consumo de água, do Instituto Trata Brasil, em parceria com a Way Carbon, os efeitos negativos das mudanças climáticas são e serão cada vez mais frequentes.
Fenômenos como ondas de calor, secas e tempestades têm impactos diretos nos mais diversos setores da sociedade e não podem mais ser ignorados. “É necessário pensar obras tanto de mitigação quanto de adaptação a essas mudanças climáticas para que esse impacto não chegue na vida do cidadão”, avalia a especialista.
De acordo com o estudo do Instituto Trata Brasil, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rio de Janeiro são os estados com mais risco de terem o abastecimento de água afetado por tempestades;
Mato Grosso do Sul e Amazonas apresentam os maiores riscos de o abastecimento de água ser afetado por ondas de calor; Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba possuem o sistema de abastecimento de água ser afetado por ondas de calor; Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba possuem o sistema de abastecimento de água mais vulnerável a secas meteorológicas.
Nesse cenário de mudanças climáticas, a diminuição das perdas de água é, segundo a especialista, ainda mais importante. No Brasil como um todo, a perda é de 37,8%. Nas regiões mais críticas, como Norte e Nordeste, o percentual é próximo dos 50% (46,9%, na região Norte, e 46,7%, na região Nordeste).
A perda a que a Luana Pretto se refere não tem nada a ver com a torneira aberta enquanto você escova os dentes e, sim, com os vazamentos no sistema de distribuição. “Perda só se reduz com investimento e com monitoramento constante. Os novos prefeitos precisam ter um plano estruturado de redução de perdas, com ações concretas”, defende.
FOCO DEVE ESTAR NAS ÁREAS MAIS VULNERÁVEIS
Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, sem água tratada ou banheiro, crianças de até 11 anos possuem dificuldades em identificar as horas num relógio ou calcular o troco. Um jovem de 19 anos que não tem acesso a saneamento tem atraso médio de quase 2 anos de escolaridade. Já a diferença de renda ao longo da vida chega a quase 50%.
Da população sem acesso ao básico, 75% possuem renda de até 1 salário-mínimo e são, em sua grande maioria, pretos, pardos e indígenas, jovens, com o ensino fundamental incompleto.
Segundo a presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, os dados por si só já justificam a necessidade de investimento em áreas mais vulneráveis. “Existe todo um custo de saúde e de perda de desenvolvimento e de produtividade envolvido no não acesso ao saneamento”, alerta. “Com o novo Marco Legal do Saneamento, não há mais a desculpa de que não dá para levar saneamento para área irregular”, reforça a especialista. Pela lei, basta haver algum projeto de organização de legalização da área para que o saneamento possa chegar.
Para que isso de fato aconteça, Luana Pretto acredita que é necessário engajar a comunidade na busca por soluções e instituir programas de tarifa social como o Tarifa 10, que oferece um valor fixo de R$ 10 nas contas de água e esgoto para famílias de baixa renda em Manaus. O benefício é concedido para quem consumir até 15 mil litros de água tratada (15 metros cúbicos) por mês.
Com perdão do trocadilho, saneamento é básico. Apesar de, segundo o Instituto Trata Brasil, grande parte dos estados estarem estruturando projetos na área, eles precisam efetivamente acontecer.
Enquanto isso não ocorre, estamos mais perto do grave cenário gerado pela inteligência artificial do que das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU.
Segundo o VIII Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, de 2024, produzido pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, nenhuma meta do ODS 6,
relativo a disponibilidade e a gestão sustentável de água e saneamento para todos, alcançou resultado positivo em 2023. Sem dúvida, saneamento básico continua sendo um enorme desafio e precisa ser enfrentado com urgência pelos novos prefeitos.
*Com informações da Veja